Não incide IOF em empréstimos entre empresas do mesmo grupo | sexta-feira, 14 de novembro de 2025
Em grupos econômicos, é comum que as empresas compartilhem recursos financeiros para equilibrar o caixa através de um modelo de tesouraria centralizada, formalizado por contratos de “conta corrente” ou “caixa único”. Essa prática, que faz todo sentido do ponto de vista da gestão, gera uma dúvida tributária crucial: essas movimentações internas geram IOF?
A Receita Federal frequentemente entende que sim, enxergando nesses fluxos verdadeiros empréstimos (mútuos) entre empresas do grupo, o que dá origem a autuações milionárias baseadas no IOF-crédito.
A discussão parte de um caso concreto julgado pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), no qual a fiscalização cobrou mais de R$ 20,9 milhões em IOF sobre lançamentos entre empresas do mesmo grupo. Enquanto o Fisco via a operação como mútuo, a contribuinte sustentava tratar-se de um contrato de conta corrente para gestão de caixa, sem juros e com fluxo multidirecional.
A partir desse contexto, vamos explicar a análise do CARF, diferenciar os conceitos de mútuo e conta corrente, abordar a jurisprudência e os riscos práticos, e apontar cuidados essenciais para os grupos empresariais.
No caso em questão, a fiscalização argumentou que os lançamentos contábeis em contas de “partes relacionadas” configuravam operações de mútuo, sujeitas ao IOF. A empresa, por sua vez, defendeu que os repasses visavam suprir necessidades momentâneas de caixa, sem a cobrança de juros ou obrigação de devolução imediata, caracterizando uma ferramenta de gestão, e não um empréstimo. Após a Delegacia da Receita Federal de Julgamento (DRJ) manter a autuação, o caso subiu para o CARF.
Para decidir, o Conselho precisou analisar a substância da operação à luz de três pilares normativos. O primeiro é o Código Civil, que define mútuo como o empréstimo de coisas fungíveis (dinheiro, no caso) com a obrigação de restituição. A essência é a existência de um credor, um devedor e a expectativa de devolução, geralmente acrescida de juros.
O segundo pilar é a Lei 9.779/1999, que estendeu a incidência do IOF às operações de crédito em que uma pessoa jurídica, mesmo não sendo instituição financeira, concede recursos a outra em condições equivalentes a um mútuo.
Por fim, o Código Tributário Nacional (art. 110) estabelece um limite importante: a lei tributária não pode alterar conceitos do direito privado. Isso significa que o Fisco não pode simplesmente rebatizar um fluxo de caixa como “mútuo” por conveniência arrecadatória, se a operação não possui os elementos jurídicos de um empréstimo.
Munido desses conceitos, o CARF analisou o conteúdo do contrato de conta corrente firmado entre as empresas. Observou um fluxo multidirecional de recursos, onde as empresas ora enviavam, ora recebiam valores, sem posições fixas de credora ou devedora. O controle contábil era detalhado, não havia cobrança de juros (apenas, em alguns casos, atualização monetária) e os saldos eram ajustados periodicamente.
Diante desse conjunto, o relator concluiu que a operação se assemelhava mais a uma comunhão de caixa do que a um mútuo, afastando a caracterização de “operação de crédito” e, consequentemente, a incidência do IOF.
Essa análise evidencia a diferença fundamental entre um mútuo e um contrato de conta corrente bem estruturado. A tabela a seguir sintetiza os pontos-chave:
| Aspecto | Mútuo (empréstimo típico) | Conta corrente intra-grupo (caixa único) |
|---|---|---|
| Natureza jurídica | Empréstimo de coisa fungível (dinheiro) | Relação contínua de crédito/débito entre empresas do grupo |
| Posições de credor e devedor | Fixas e bem definidas | Tendem a ser variáveis, com alternância de saldos |
| Obrigação de restituição | Sim, essencial ao contrato | Nem sempre há obrigação de devolução imediata ou individualizada |
| Cobrança de juros | Comum (salvo mútuo gratuito, que é exceção) | Em regra, não há juros; pode haver apenas atualização monetária |
| Fato gerador de IOF | Sim, há incidência de IOF-crédito | Só haverá IOF se a relação for equivalente a mútuo |
| Base normativa principal | CC, art. 586; Lei 9.779/1999, art. 13; Dec. 6.306/2007 | Decorre de contrato atípico; avaliado à luz do direito civil e tributário |
| Registro contábil | Empréstimo ativo/passivo, com prazos definidos | Contas de “partes relacionadas” com entradas e saídas recorrentes |
| Risco de autuação de IOF | Elevado (é operação típica de crédito) | Médio: depende da substância da operação e da documentação |
| Exemplo típico | Empresa A empresta R$ 1 milhão à Empresa B, com prazo e juros | Empresa A e B usam conta comum para cobrir necessidades de caixa |
Apesar da decisão favorável neste caso, o cenário geral é de insegurança jurídica. A Receita Federal costuma adotar uma interpretação ampla do conceito de mútuo, considerando que a simples disponibilização de recursos com apuração de saldos devedores já configura fato gerador do IOF. Dentro do próprio CARF, o tema não é pacífico, existindo tanto decisões favoráveis ao Fisco quanto ao contribuinte.
Isso significa que não basta chamar o contrato de “conta corrente” para afastar o IOF; é a substância da operação que conta. Um arranjo pode ser requalificado como mútuo se os fluxos forem predominantemente unidirecionais (sempre da empresa A para a B), se houver cobrança de juros ou prazos definidos para devolução. Nesses casos, a operação se parece muito com um empréstimo disfarçado.
Para reforçar a caracterização como uma conta corrente genuína e mitigar riscos, as empresas devem garantir que a operação apresente fluxo multidirecional, alternância de saldos, ausência de juros remuneratórios e uma documentação robusta (contrato, políticas de tesouraria e registros contábeis coerentes). É preciso lembrar também que essas operações podem ter implicações em outras áreas, como preços de transferência e regras de subcapitalização.
Para organizar o raciocínio e avaliar o risco em uma situação prática, o seguinte diagrama pode servir como um roteiro simplificado:
Em suma, a decisão do CARF reforça que nem toda movimentação de caixa entre empresas do mesmo grupo é um mútuo sujeito ao IOF. Para que o imposto incida, é preciso que a operação tenha as características de uma operação de crédito, com posições claras de credor e devedor e obrigação de restituição. Contratos de conta corrente bem estruturados, com as características discutidas, possuem bons argumentos para afastar essa tributação.
Ainda assim, diante da postura do Fisco e da divergência jurisprudencial, grupos empresariais precisam agir com cautela, revisando seus contratos, alinhando a prática contábil ao desenho jurídico e implementando políticas claras de governança. Esse cuidado não elimina o risco por completo, mas o reduz significativamente, aumentando as chances de sucesso em um eventual litígio e demonstrando a legitimidade da gestão de seu caixa corporativo.
BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 out. 1966.
BRASIL. Lei nº 9.779, de 19 de janeiro de 1999. Altera a legislação tributária federal e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 jan. 1999.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
BRASIL. Decreto nº 6.306, de 14 de dezembro de 2007. Regulamenta o Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários – IOF. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 dez. 2007.
BRASIL. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Acórdão nº 3301-014.486, de 29 de julho de 2025. Processo nº 13136.720648/2022-26. 3ª Seção, 3ª Câmara, 1ª Turma Ordinária. (Transcrição fornecida pelo usuário; referência utilizada como fonte presumida, sem confirmação em repositório oficial em razão da data).
MIGALHAS. Carf: Não incide IOF em empréstimos entre empresas do mesmo grupo. [S.l.: s.n.], [s.d.].

Advogado inscrito na OAB/DF, nº 73.449
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