Como contratos bem feitos, acordos de sócios e estruturas societárias com propósito real podem salvar a sua empresa — e por que a “holding de gaveta” é um risco disfarçado de solução. | quinta-feira, 4 de dezembro de 2025
A boa notícia é que existem estratégias societárias robustas que independem de “holding de gaveta” e, muitas vezes, são mais eficientes. A primeira delas é, justamente, a revisão cuidadosa do contrato social. É possível — e recomendável — incluir cláusulas bem claras sobre o que acontece na morte de sócio: se haverá ingresso automático dos herdeiros como sócios; se a sociedade irá liquidar as quotas e pagar em dinheiro; quais serão o prazo e o critério de apuração de haveres; se haverá pagamento à vista, parcelado, com correção, juros, garantias. Quanto mais objetivos forem esses critérios, menor o espaço para conflito.
Em complemento, o acordo de sócios pode detalhar regras de voto, limites de participação de familiares na gestão, direitos de preferência na compra de quotas, mecanismos de saída amigável e, especialmente, o tratamento específico para o evento morte. Uma ferramenta bastante utilizada em mercados mais maduros, e cada vez mais adotada no Brasil, é o chamado buy-sell agreement: um pacto de compra e venda de quotas para o caso de falecimento ou incapacidade de um dos sócios, com fórmula objetiva de valuation previamente definida. Na prática, isso significa que, se um sócio morre, a sociedade ou os sócios remanescentes têm o direito, ou até a obrigação, de adquirir essas quotas dos herdeiros por um valor calculado segundo parâmetros já combinados.
Para tornar isso financeiramente viável, muitas estruturas utilizam seguro de vida vinculado ao acordo. O capital segurado é destinado justamente a gerar liquidez no momento da morte, permitindo que a empresa ou os sócios remanescentes comprem a participação do falecido sem estrangular o caixa operacional. Assim, os herdeiros recebem recursos, a empresa mantém a continuidade sob a direção de quem já está preparado, e o risco de litígio diminui significativamente.
E onde entra a holding nessa história? A holding, seja operacional ou patrimonial, pode ser uma excelente ferramenta quando existe um conjunto maior de empresas, necessidade de centralizar participações, profissionalizar a gestão de bens ou estruturar uma governança mais sofisticada para a família empresária. Nesses casos, a holding tem propósito claro: organizar o patrimônio, facilitar a sucessão, separar risco operacional de patrimônio familiar, racionalizar decisões administrativas, concentrar a relação com bancos e investidores. É uma peça dentro de um projeto, não uma solução mágica isolada.
Isso é completamente diferente da “holding de gaveta”, aquela empresa de fachada, sem atividade real, sem contabilidade adequada, criada apenas para “baixar imposto”. Aqui vale um comparativo direto:
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Estruturas societárias
Holding funcional x Holding de gaveta
Holding funcional: Holding de gaveta: |
Quando a estrutura é artificial, as consequências podem ser severas: além da glosa de benefícios fiscais, pode haver cobrança retroativa de ITCMD e Imposto de Renda, com multa e juros, questionamento de isenções e, em hipóteses mais graves, desconsideração da própria holding para atingir diretamente o patrimônio dos sócios. Quando a estrutura é séria, apoiada em registros contábeis confiáveis, contratos coerentes e um propósito econômico claro, ela passa a ser um instrumento legítimo de organização e sucessão.
Outro ponto relevante diz respeito às alternativas de transmissão das quotas: deixar tudo para o inventário, ou antecipar parte da sucessão em vida, seja por doação, seja por reorganizações societárias bem pensadas. Uma comparação simplificada ajuda a visualizar:
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Alternativas de transmissão
Inventário x Doação em vida de quotas
Transmissão via inventário (causa mortis): Doação planejada em vida: |
Nas doações de quotas, é possível usar cláusulas restritivas para proteger o patrimônio familiar em determinadas situações de risco: inalienabilidade (proibição de vender), incomunicabilidade (impedimento de que o bem se comunique com cônjuge em regime de comunhão) e impenhorabilidade (proteção contra penhora por dívidas). O Código Civil, especialmente nos artigos 1.846, 1.848 e 1.911, estabelece os limites dessas cláusulas, exigindo, por exemplo, “justa causa” para gravar a legítima dos herdeiros necessários. É uma ferramenta poderosa, mas que precisa ser usada com equilíbrio, para não engessar demais a próxima geração.
Tudo isso mostra que o planejamento sucessório empresarial não pode ser visto isoladamente como “questão de imposto”. Ele precisa integrar, de forma responsável, quatro dimensões: societária (contrato social, acordo de sócios, tipo de sociedade), sucessória (herdeiros, legítima, testamento), tributária (ITCMD, IR, custos) e familiar (dinâmica da família, perfil dos sucessores, governança). Em muitas empresas familiares, passa também pela criação de mecanismos como conselho de família, protocolo familiar e regras claras para ingresso de parentes em cargos de gestão e em órgãos de governança.
Na prática, um fluxo mínimo de planejamento pode ser visualizado assim:
Uma observação importante é que o cenário tributário e societário brasileiro está em transformação. A Emenda Constitucional 132/2023, que trata da Reforma Tributária sobre o consumo, não mexeu diretamente no ITCMD, mas reorganizou o sistema e reacendeu discussões sobre tributação de patrimônio e herança. Ao mesmo tempo, vários Estados vêm revisando suas legislações de ITCMD, adotando alíquotas progressivas e debatendo aumentos para grandes transmissões. Isso significa que um bom planejamento não é um documento “que se faz uma vez e nunca mais se olha”, mas um processo vivo, que precisa ser revisitado periodicamente.
Diante de tanta complexidade, uma mensagem se impõe: a morte do sócio é um evento certo; o colapso da empresa, não. O que vai definir se a sua empresa entra em crise ou atravessa o luto com continuidade e segurança é o planejamento que você faz em vida — no contrato social, no acordo de sócios, na organização patrimonial e na forma como a família é envolvida no projeto empresarial.
Planejamento sucessório empresarial não é apenas uma discussão sobre imposto; é, sobretudo, uma questão de governança, proteção familiar e sobrevivência do negócio no longo prazo. Holdings podem ser ferramentas extremamente úteis quando bem estruturadas e alinhadas a um propósito legítimo, mas a “holding de gaveta”, sem substância, tende a gerar mais risco do que proteção.
Se eu pudesse resumir em recomendações práticas, diria: revise o seu contrato social e verifique se ele trata adequadamente de morte, saída e sucessão de sócio; avalie a conveniência de estruturar um acordo de sócios robusto, com regras de voto, preferência e buy-sell; desconfie de soluções padronizadas que prometem economia automática de tributos; e documente sempre o propósito negocial de qualquer reorganização, mantendo uma contabilidade alinhada com a realidade do grupo.
É fundamental, ainda, integrar profissionais de diferentes áreas: advogado societário, tributarista, contador — e, em muitos casos, especialistas em governança de empresas familiares e planejamento financeiro. Todos precisam olhar para o mesmo plano, com foco no longo prazo e na continuidade da empresa.
Por fim, um aviso necessário: cada família e cada empresa têm uma realidade jurídica, tributária e patrimonial própria. O que faz sentido para um grupo pode ser totalmente inadequado para outro. As referências legais e jurisprudenciais mencionadas aqui são gerais, podem mudar com o tempo e ainda sofrem variações importantes entre os Estados, especialmente em matéria de ITCMD. Este conteúdo tem caráter exclusivamente informativo e educacional; não substitui uma consulta jurídica individualizada e não constitui, em nenhuma hipótese, orientação específica para o seu caso concreto.
Antes de implementar qualquer estrutura de planejamento sucessório, busque orientação técnica qualificada e formalize tudo por escrito, com segurança jurídica. Se você tem dúvidas gerais sobre planejamento sucessório empresarial, cláusulas de contrato social, acordo de sócios ou uso responsável de holdings, esse é exatamente o tipo de questão que escritórios especializados – como a LLR Advocacia – estão preparados para analisar com profundidade, considerando os detalhes do seu negócio e da sua família.
Legislação
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei Complementar n. 104, de 10 de janeiro de 2001. Altera dispositivos da Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2001.
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BRASIL. Lei n. 7.713, de 22 de dezembro de 1988. Altera a legislação do imposto de renda e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1988.
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
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BRASIL. Emenda Constitucional n. 132, de 20 de dezembro de 2023. Altera o Sistema Tributário Nacional e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 dez. 2023.
SÃO PAULO (Estado). Lei n. 10.705, de 28 de dezembro de 2000. Institui o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 29 dez. 2000.
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Doutrina
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